Viagem - 2019
As aventuras de "Toró" em Santa Maria da Vitória
...e o garçom, se aproximando, me acordou dizendo...
- Não sei se li em algum lugar ou alguém me disse:
"A carranca quando é vista da terra, no espelho das águas, parece que se move, parece que tem vida."
Estes registros são o resultado de minha terceira e mais recente viagem a Santa Maria da Vitória: de 22 à 29 de junho de 2019.
Passei uma semana convivendo com pessoas muito interessantes, e inspirado por essa gente simpática, tão genuinamente brasileira, pelos dias quentes de céu azul nessa cidade baiana banhada pelo Rio Corrente, me dediquei a escrever esta aventura-ficção, com alguns pingos de verdade.
Agradecimentos
Agradeço pelo carinho com que fui recebido em Santa Maria da Vitória por ocasião da III FLIT – Feira Literária em 25 e 26 de junho de 2019 e comemoração pelos 110 anos do município com esse nome.
Renato Rodrigues Leite Junior
Valdeci Augusto de Oliveira
Thais Nogueira Oliveira
Júnio Guarani
Adnil Novais Neto
Hermes Novais Neto
Maria Angélica Rosa Fagundes Laranjeira
Jairo Rodrigues da Silva
Seu Limiro e músicos
Alanne Mesquita de Souza
Antônio Nelson Oliveira de Azevedo
Cássia Evangelista
Gilson de Jesus Soares
José Roberto da Silva Neves
Maurício Silva Rocha
Diele Silva Rocha
Agradecimentos especiais
Agradeço também às esposas de muitos de vocês que calorosamente me receberam, assim como seus parentes e a todos que possibilitaram e organizaram esses dias de encontros tão proveitosos.
E não posso deixar de citar as senhoras Adozinda Khulmann (em memória) e Nadime Boueri, que, sem saberem, colocaram esse destino nas nossas vidas e graças a elas nós conhecemos.
Preciso ressaltar que foi por intermédio da senhora Adozinda Khulmann que Jurandi Assis foi incentivado a escrever e através do empenho da senhora Nadime Boueri, duas de suas obras foram compor o acervo de obras de arte do Palácio do Governo do Estado de São Paulo.
As aventuras de "Toró" em Santa Maria da Vitória
Num agradável fim de tarde ensolarado de junho, sentado num banco de jardim, na Praça do Jacaré, distraído, pensando na vida, olhando para as águas do rio que vem de lá de cima, detrás da passarela, meus olhos acompanhavam a correnteza como se eu estivesse num barco sonhando e descendo o rio...
Naquele momento vi uma lágrima escorrer pelo seu rosto seguindo o caminho de uma ruga até parar na ponta do queixo e cair.
Zé virou-se para um lado e enxugou o rosto no ombro da camisa.
Em seguida deu um longo suspiro e falou:
- Estou indo para um vilarejo a meio caminho do Velho Chico. Amanhã vou para Bom Jesus da Lapa. Preciso comprar uma rede nova. A minha está muito velha e emaranhada. Quer vir comigo fazer companhia e passear?
- Mas agora, de noite?
- Sim. A noite estará clara nesta época do ano. Dá para descer o rio e amanhã subiremos até a Lapa. Depois retornamos ou se quiser você volta de van.
Eu pensei. Não tinha nada o que fazer e nem no dia seguinte. As festividades começariam somente na terça-feira.
Corri até o hotel avisar o gerente, peguei uma jaqueta de couro e num instante estávamos nós dois dentro da canoa descendo o Rio Corrente.
Uma robusta canoa de cedro.
Zé assumiu a proa e eu fiquei na popa quase que deitado, olhando para o céu.
Depois da curva do rio, Santa Maria da Vitória não estava mais às nossas vistas.
No percurso não se falava nada.
Ao mesmo tempo em que o trajeto era monótono, era tenso, pois tínhamos que estar atentos o tempo todo para um eventual imprevisto.
E não é que isso aconteceu!
Na fração de segundo que Zé se distraiu a correnteza levou a canoa para um banco de areia e levamos um tranco.
- Que susto! Eu disse.
- Desculpe. Disse Zé.
- O que aconteceu? Perguntei.
- Me distraí. Fui olhar para a margem do rio achando que era um jacaré e não era nada. Apenas sombras da noite nos iludindo e metendo medo.
Arrepiei. E se fosse de verdade um jacaré? Ainda bem que temos o "Toró". As figuras de proa foram criadas justamente para isso, há muito tempo atrás, para espantar animais perigosos, afugentar maus espíritos, tempestades e naufrágios e para dar sorte.
Guarany que o diga das tantas que fez.
E desta vez foi sorte. Nada de mais aconteceu.
Passado um tempo chegamos ao vilarejo.
Zé amarrou a canoa num toco e descemos.
Antes passou a mão na cabeça de "Toró".
Dei alguns passos, parei e olhei para trás.
Parecia que "Toró" olhava para mim.
- Então! Vamos? Disse Zé.
- Hã! Sim... Sim... Vamos.
Continuamos andando para dentro do mato por um caminho estreito sob a luz do luar.
Eu não tinha a menor idéia de onde estava.
Usar o celular nem pensar. Sem chance. Sem sinal.
Continuamos andando e ouvimos cachorros latindo e se aproximando.
Zé parou e disse:
- Chegamos a Porto Novo.
Parei e logo avistei um velho casebre de taipa, surrado pelo tempo e com telhado de sapê.
Porta e janela fechadas e um fio de fumaça saindo de uma chaminé lateral.
Zé se aproximou do casebre e gritou:
- Óh de casa!
Logo se ouviu uma voz dizendo.
- É você, Zé? Vamos entrando.
Segui Zé e entramos no casebre.
Sentando numa cadeira de balanço estava um velho envolto num cobertor com mãos trêmulas, pitando um cachimbo.
Zé foi até ele, segurou sua mão, cumprimentou e beijou sua testa.
Percebi que o velho mal enxergava.
- Benção, pai! Disse Zé.
- Benção, filho!
- Pai, quero apresentar um amigo que mora em São Paulo.
- Onde está? Perguntou o pai.
Zé pegou na minha mão e a encostou na mão do pai, fazendo com que eu o cumprimentasse.
Instantaneamente colaborei com o gesto e disse:
- Muito prazer!...
Naquele momento olhei para Zé querendo saber o nome de seu pai.
Zé entendeu e sussurrou...
- Tônho.
- Prazer, seu Tônho! Tudo bem, seu Tônho?
- Hã. Tudo bem?... Tudo bem nada, meu filho... Estou velho e quase cego... Mal ouço e você me pergunta se está tudo bem?
Antes que eu ficasse constrangido com a resposta, Zé intercedeu dizendo:
- Não ligue para ele, não. Ficou velho e rabugento. E então, pai. Já jantou?
- Sim. A Teresinha passou por aqui e me serviu uma sopa.
- Que bom.
- Pai, eu trouxe batatas, cebolas, cenouras e tomates. Estamos indo de manhã cedo para Bom Jesus da Lapa. Na volta pesco um dourado e deixo para o senhor. Peça para Teresinha lhe fazer uma caldeirada.
Nesse momento Tônho perguntou:
- Onde mesmo é que mora seu amigo?
- Mora em São Paulo. Disse Zé.
- O senhor conhece São Paulo? Perguntei.
- Infelizmente nunca fui para São Paulo nesses oitenta anos de vida. Como é São Paulo?
E agora? Como responder? Como explicar como é São Paulo versus um casebre perdido no meio do mato?
- Bem. Eu disse. Difícil explicar. A cidade de São Paulo é gigantesca.
E aí tive uma idéia muito... Talvez sem graça e disse:
- É como comparar uma pessoa com um fio de cabelo na cabeça e um cabeludo.
Tônho caiu numa gargalhada.
Eu olhei para Zé, que ria também.
Nesse momento Zé colocou uns gravetos sob o fogão a lenha, deu uns sopros, reavivou o fogo e disse:
- Vou requentar o café. Aceita um pedaço de rapadura?
Como não aceitar, pensei. Na verdade não tinha pensado no jantar. Não contava com isso. Lá se foi meu camarão e salada acompanhados de suco de abacaxi com hortelã do restaurante à beira do rio, em Santa Maria da Vitória.
Zé logo foi me apresentando a Teresinha, uma mulher de idade, magra, bem ativa e bem humorada.
- Então o senhor é de São Paulo. Ela disse.
- Sim. Respondi.
- Estive em Aparecida há muitos anos atrás, numa romaria.
- Interessante. E gostou?
- Muito. Ela respondeu.
- E conheceu a cidade de São Paulo?
- Não, Só conheci o bairro da Penha e a Igreja de Nossa Senhora da Penha. Muito grande e bonita. Minha irmã mora bem perto da igreja.
- Legal. Respondi.
Nesse momento Zé interferiu dizendo que era hora de seguir nosso caminho. Deu um beijo no pai e acenou para Teresinha.
Antes pegou um chapéu de palha, me deu e disse:
- Pegue. Vai precisar.
Despedi-me de Tônho e de Teresinha e retornamos para a canoa.
O sol já tinha se levantado e o frio estava indo embora.
Chegando à margem, Zé desamarrou a canoa e entramos. Ele deu duas remadas e disse:
- Vamos embora "Toró", temos muita água pela frente.
Eu me acomodei na popa e assim que a canoa se alinhou com a correnteza, com o sol batendo no meu rosto, coloquei o chapéu na cabeça e no embalo das águas, adormeci...
Adormeci e sonhei que estava andando por Santa Maria num outro tempo. Um tempo em que muitos personagens se misturavam. Um tempo em que Guarany esculpia suas carrancas e Paulo Pardal o entrevistava e fotografava, Jurandi com seus amigos nadavam no Corrente e soltavam pipas no campo de futebol atrás da escola. Dona Rosa levava crianças para a igreja Presbiteriana e grandes barcos, com suas figuras de proa, atracavam e descarregavam mercadorias trazidas do nordeste. O "Almirante", o "Minas Gerais", o "Ubirajara" e tantos outros. Passou-me também em sonho Osório Alves de Castro, lá em Marília, entre tesouras e tecidos, escrevendo no seu "Porto Calendário"... "a Tia Gatona que sem ter para onde ir, arranjou-se na Casa dos Bexiguentos"... (frase do livro).
Acordei com um berro do Zé.
- Acorda, homem de Deus!
Levei um susto e só então percebi o que aconteceu. Adormeci. Sonhei. Zé me acordou.
- Acorda! Temos de trocar de embarcação. A canoa não sobe o rio hoje. A correnteza está muito forte. Choveu rio acima. Está descendo muita água...
Vamos!
Levantei e percebi que estávamos na margem direita do Corrente, na frente do grande São Francisco. Saí da canoa e fomos andando em direção a uma embarcação maior. Entre as duas embarcações, um caminho lamacento. Meus sapatos ficaram logo empapados e, como se não bastasse, num trecho do caminho, ao dar um passo, um pé ficou enterrado. Não teve jeito. Tive de enfiar a mão para retirar o sapato. Que mer....! Eu, que vim todo arrumadinho, estava um lixo enquanto Zé, descalço, pisava com tranquilidade naquele solo que lhe era conhecido. O barro mole passava pelos dedos dos seus pés e às vezes subia acima do calcanhar. Que caminhada! Ah! Se eu contar isso para uns granfinos em São Paulo. Uns não vão acreditar, outros nem vão querer ouvir. O relógio do celular marcava quase dez horas. Quanto a sinal? Nem pensar! Antes de entrar no barco, uma sorte. Avistei uma torneira no ancoradouro. Bendito seja quem teve essa idéia! Zé tinha lavado seus pés e eu lavei o que pude. Sapatos, meias, barras da calça, jaqueta e mãos. Eu estava todo molhado, porém de certa forma limpo e o sol iria secar minha roupa num instante. Entramos no "Ilhabela".
- Bênção, padre! Tudo bem? Bom dia!
- Bom dia! Ele respondeu. E ficamos quietos.
Acho que ele estava irritado com a batina toda suja. Ou será que tinha cometido algum pecado? Sabe-se lá...
De repente Zé soltou o barco que estava preso a uma estaca e pulou para dentro.
O piloto deu um grito:
- Vamos embora! Que Deus nos proteja! Vamos para Lapa!
Em seguida, ouvimos um barulhão: o "Ilhabela" com seu ronco mostrou a potência do seu motor e começamos a subir o Velho Chico, rumo a Bom Jesus da Lapa.
Cada um se ajeitou num canto.
Zé ficou conversando com o piloto e eu fiquei na popa, observando.
Foi bom Zé me emprestar o chapéu. Senti o sol queimando minha pele.
Durante o percurso paramos duas vezes. A primeira para uma das crianças fazer suas necessidades. Quando o "Ilhabela" atracou num pequeno vilarejo ela desapareceu por uns momentos e foi se enfiar no meio de uma vegetação. As outras crianças ficaram espiando. Ninguém falou nada.
Na segunda vez o piloto atracou num vilarejo maior. Pediu para Zé ajudar e os dois desceram com a gaiola das seis galinhas e a gaiola do galo. Em terra, duas mulheres e um menino aguardavam. Pegaram as gaiolas e desapareceram.
O motor do "Ilhabela" voltou a roncar e continuamos subindo o rio.
Nesse último trajeto, até chegar à Lapa, a correnteza sossegou e o piloto reduziu bastante o motor, fazendo com que todos ouvissem as crianças cantando...
"Com a carranca na proa
Eu vou e volto vivo
Com a carranca na proa
Eu subo e desço o rio
Não há jacaré que me assuste
Não há sombra que me atormente
Com a carranca na proa
Eu vou e volto vivo
Com a carranca na proa
Eu subo e desço o rio
Nada me assusta
Nada me atormenta
Com a carranca na proa
Eu subo e desço o rio
Não há jacaré que me assuste
Não há sombra que me atormente
Eu vou e volto vivo"
Nota: A letra da canção é do autor.
E assim chegamos a Bom Jesus da Lapa. Na saída, por descuido, os dois homens deixaram a caixa com o porco cair no chão. Ela quebrou e o porco saiu correndo pela beira do rio. Uma cena muito engraçada. O porco corria de um lado para outro e os homens, desesperados, atrás, sem saber para que lado ir. Enquanto isso, as mulheres gritavam e xingavam. As crianças riam sem parar. O piloto teve uma presença de espírito e com uma rede de pesca foi ajudar os homens, que já estavam rendidos de tanto correr. Eu fiquei de pé na proa, observando. Zé não se manifestou e disse:
- Veja, o porco está indo para aquela ponta de areia. Vai ser fácil de pegar.
E foi o que aconteceu. Em seguida cada um foi para seu lado.
Caminhamos em direção a cidade e eu com uma fome danada.
A primeira coisa que fiz foi perguntar a Zé onde iríamos almoçar.
- Calma. Ele respondeu. Logo mais.
Acreditei e o segui. Eu não tinha opção. Ele era meu guia.
Andamos pela margem do rio em direção à cidade uns dois minutos. No percurso se via a ponte e a marca da água nas suas colunas. Me impressionou a altura da marca e me perguntei de onde vinha tanta água.
Enfim, Bom Jesus da Lapa.
Segunda-feira. Um agito. Homens, mulheres, crianças, bicicletas, motos, carros, vans, carroças, caminhões.
Todos em circulação. Barraquinhas de vendedores de pipoca, cachorro quente, pastel e caldo de cana e eu...
...com uma fome danada.
Entramos por uma avenida com muitos caminhões estacionados. E vi um grande galpão. O mercado.
...hum... Comida!
Zé não parou, para meu azar.
Andamos uns duzentos metros e viramos numa travessa. Logo me deparei com uma loja de armarinhos daquelas que tem de tudo, a um precinho bem razoável, tipo zero noventa e nove.
Assim que ele parou na porta, ouvimos alguém dizendo:
- Bom dia, Zé!
- Bom dia, dona Maria!
- Então! O que conta de novo?
- Tudo de velho. A senhora sabe. Fiquei viúvo.
- Sim. Fiquei sabendo. Pêsames.
- Obrigado.
- Vai casar outra vez?
- Sei não... Talvez... Quem sabe o que o destino me reserva.
- Diga lá! Posso ajudar?
- Vim comprar uma rede.
- Pode escolher.
- E quem está com você?
- Ah! Este é meu amigo de São Paulo.
- São Paulo? Conheço muita gente de lá. Muita gente do bairro de Santo Amaro. Eles vêm aqui na virada de julho para agosto na romaria.
- É a primeira vez na Lapa? Ela me perguntou.
- Sim.
- Então, por favor, Zé, não deixe de levá-lo na gruta. Não é todo dia que alguém de São Paulo tem a oportunidade de estar aqui.
Gostei do ouvir, realmente uma oportunidade imperdível, mas... Eu estava com uma fome de torcer o estômago. Em meio à confusão de clientes entrando e saindo da loja e a nossa conversa, perguntei de novo para Zé quando iríamos almoçar. Ele riu e disse:
- Agora.
- Agora? Como assim?
- Dona Maria, meu amigo está morrendo de fome. Ainda estão servindo almoço?
- Sim! Vá lá no fundo. Você sabe o caminho. Vão lá almoçar, que depois a gente continua a prosa.
- Venha. Disse ele. Vamos almoçar.
Finalmente! Segui Zé, que caminhava por um corredor estreito até o fundo da loja e saímos numa garagem. Era um boteco. Um local de refeições. Um cheiro de peixe frito imediatamente me atraiu e despertou ainda mais meu apetite. Tomei a liberdade de ir até uma pia lavar as mãos e molhar o rosto. No balcão, tirei um pedaço de barbante de um rolo que estava ao meu alcance e amarrei em dois pontos do meu chapéu de palha.
Assim livrava as mãos e pude ficar com ele jogado às costas. Nos sentamos e Zé pediu um refrigerante litro. Não tinha cardápio e eu estava meio que desorientado. Não demorou muito e uma menina nos trouxe a garrafa de refrigerante e dois copos.
- Aqui não tem escolha. Disse Zé. É comer o que servem.
- Tudo bem. Eu disse.
A menina retornou. Colocou sobre a mesa dois pratos, dois garfos e duas facas e em seguida foi trazendo em pequenas travessas de alumínio, arroz, feijão, feijão de corda, farinha, salada, e finalmente o tão esperado pelo meu estômago: o peixe frito.
- Certamente! Bom passeio.
Nos despedimos e saímos.
Fui seguindo Zé, que me levava para conhecer a gruta. A cidade estava toda enfeitada com bandeirinhas para as festas juninas. Uma beleza.
Oh! Bendito o que semeia
Livros... Livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.
E na página direita um poema atribuído a Belmiro Braga:
Um livro aberto, parece
Uma ave que quer voar
E, quem lê, reza uma prece
Ao saber, santo de altar
Saindo da Praça do Livro retornei à Avenida Manoel Novais. Eram cerca de quatro horas da tarde. Parei na praça da antiga prefeitura e estudei a planta da cidade num painel dependurado numa banca de jornal. Tinha que estar no dia seguinte em Santa Maria da Vitória e resolvi aproveitar aquele final de tarde ao máximo. Puxei conversa com um motorista de praça e perguntei onde poderia acessar com segurança a margem do rio e ele respondeu:
- Nessa hora do dia é melhor ir para o outro lado, onde estão os restaurantes.
Não titubeei e disse:
- Me leve lá, por favor.
Entrei no carro, empurrei o assento para trás, prendi o cinto de segurança e me acomodei. No caminho fomos conversando e ele perguntou:
- O senhor, de onde é?
- São Paulo.
- Puxa! É longe. Estive lá uma única vez no casamento de um primo. Mas isso faz muito tempo. Fui de ônibus.
- Meu Deus! Deve ter sido muito demorado.
- Ah, se foi! E o casamento foi numa igreja no Jardim São Luís.
- Não me diga! É bem perto de onde eu moro. Realmente o mundo é pequeno.
O taxista atravessou a ponte sobre o Rio São Francisco e me deixou na outra margem, onde havia alguns restaurantes e me recomendou o primeiro do lado direito. O convidei para comer uns petiscos, porém ele recusou. Disse que tinha logo mais uma corrida marcada e aprazamos para ele vir me buscar às sete horas da noite. Quando fiz o gesto de querer acertar a corrida daquele trecho ele se negou a receber, me deu seu cartão e disse que acertaríamos na volta. Nada pude fazer senão concordar.
Entrei no restaurante e me sentei a uma mesa com vista para o rio tendo ao longe, do outro lado, Bom Jesus da Lapa e seu característico morro de calcário.
À minha frente, na margem, oito grandes barcos atracados. Dois bastante inclinados, quase afundados. Na proa os nomes: "Rainha da Lapa", "Xuxa"... E não muito longe, com um característico... Toc... Toc... Toc..., vinha se aproximando o barco "Sofia".
- Então? Como foi sua viagem a Santa Maria da Vitória?
- Interessante. Respondi. Encontrei Pierre Verger tirando foto de Marcel Gautherot documentando carrancas de proa do Velho Chico...
Cenários foram se passando rápido, como num filme: Paulo Pardal entrevistando Guarany e tirando suas fotos...
Uma pessoa me mostrando a revista "O Cruzeiro" de 1947 onde aparece uma matéria intitulada "Carrancas de proa do São Francisco"..
.
Em 1954 a mídia divulga em São Paulo, por ocasião dos festejos do Quarto Centenário da cidade, a realização da primeira exposição de carrancas no Parque do Ibirapuera...
1956, uma reportagem documenta que não existiam mais carrancas nas proas das embarcações no Velho Chico...
1968, Guarany é agraciado com o diploma de membro correspondente da A.B.B.A. – Academia Brasileira de Belas Artes...
1969, Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi realizam a mostra "A mão do povo brasileiro" na inauguração da sede do MASP na Avenida Paulista em São Paulo, apresentando algumas figuras de proa e algumas carrancas...
1974, Paulo Pardal publica "Carrancas do São Francisco"...
1981, Comemoração do centenário de Francisco Biquiba de Lafuente Guarany...
1985, Falece Guarany, o mais famoso carranqueiro do Brasil.
Uma mistura de informações na minha cabeça, certamente de muita leitura. Despertei com o barulho do celular tocando. Era a recepcionista do hotel me informando que eram sete horas. Percebi que tinha sonhado. Corri para me vestir. Tomei café e me impressionou a qualidade do pão francês. Igualzinho ao das melhores padarias de São Paulo. Em seguida fui para a praça, onde se iniciariam as festividades. Encontrei cedo muitas pessoas amigas e autoridades. Hora após hora um evento diferente acontecia. Alunos das escolas públicas se apresentavam em diversas atividades. Música, dança, canto, poesia, jogral. Apresentações representando capoeira, Mestre Guarany e o artista, pintor e escritor, Jurandi Assis.
Uma beleza de festa. A organização e os alunos foram primorosos. Esforçaram-se admiravelmente. Certamente não podemos esquecer que por detrás de tudo estavam as mães, os pais, as professoras, os professores e o poder público com seus parceiros, patrocinando a festa. Naquele dia almocei no restaurante à beira do rio e à tarde fui me encontrar com alguns amigos muito especiais. Um, o depositário do ferramental da oficina de Guarany e algumas carrancas, Jairo Rodrigues, outro, um guardador de peças antigas, Hermes. Esse, diga-se de passagem, com os seus guardados, tem um verdadeiro museu em casa. Um tipo raro de pessoa. Guarda tudo que tem valor e alguma relação com o passado. Coisas de fazenda, ferramentas, selaria, coisas de casa... Tudo o que se possa imaginar. Vira e mexe os dois tem uma reportagem no Youtube. Muito interessante. Passamos horas agradáveis conversando. À noite jantei com um amigo muito importante no mesmo restaurante uma saborosa moqueca. Aliás, um dos meus restaurantes preferidos. Conversamos longos papos. Foi muito agradável. Na saída já tínhamos nos distanciado bastante do restaurante quando ele percebeu que esqueceu seu celular. Voltamos correndo. Nem precisava. O garçom parecia que nos esperava. Quando nos aproximamos ele estava com o celular em mãos nos aguardando. Ele agradeceu e comentamos como isso nos acontece com certa freqüência e nos despedimos. Na manhã seguinte, a grande festa. Santa Maria da Vitória completava cento e dez anos de emancipação política. Missas. Cerimônias. Discursos e, de novo, eventos culturais na praça. Antes do almoço, visitei a sala do Mestre Guarany e encontrei Jairo, o guardião de ferramentas e algumas obras suas.
Meu lugar é aqui...
Meu lugar é aqui,
Ao lado de Maria,
A mais bela de todas,
Que me seduz e abençoa,
Que me faz mais gente,
Aperta-me contra o peito,
E não me deixa na rua,
Perdido na multidão.
Meu lugar é aqui,
À sombra do tamarindeiro,
Vendo o Corrente passar,
Abraçado a Maria,
Maria de mil faces,
Maria feminina singular,
Que na boca traz meu riso,
E, no abraço mais forte,
Meu mundo, meu paraíso.
Meu lugar é aqui,
Onde tenho meus amigos,
Meus amores, meus castigos,
Onde sinto a cor da vida,
O frio, o sol quente, a brisa.
Onde tenho a minha memória,
Meus momentos sem igual,
Ao lado de Maria:
Santa, profana, da Vitória.
Novais Neto
Voltei para o hotel.
Fiz minhas malas.
Fui almoçar no restaurante à beira do Corrente. Como eu era um cliente habitual, fiz amizade com o garçom e ficamos conversando sobre Guarany. O rapaz era bem instruído e sabia muito sobre as carrancas e sobre a vida de Guarany.
Depois do almoço, sentado, calado, saciado de tanta fartura, encostado na mureta, com o rio bem próximo e olhando a correnteza com os olhos fechando de sono com o calor da tarde, por instantes adormeci e sonhei...
Bebemos o cafezinho e continuei...
- Dando um salto no tempo, veja meu amigo, o que é o destino!
Em novembro de 2002, estava num sebo em Santo Amaro, o bairro onde moramos em São Paulo procurando um livro. Jurandi entrou e nesse dia conversei rapidamente com ele. Ainda não nos conhecíamos.
Como nada acontece por acaso, logo em seguida, no Natal daquele mesmo ano, ganhei de presente o livro de Jurandi: "O Inventário do Cotidiano" da senhora Adozinda Khulmann. Trata-se de um livro de arte e a primeira coisa que fiz foi folhear e ver as imagens e eis que me deparo com o quadro "Carrancas do Rio Corrente" (Pags. 124 e 125).
Desde a primeira vez fiz amizades e, apesar da distância com São Paulo, graças ao whatsapp, nos relacionamos com certa frequência.
E como dizer que a admiração pelas carrancas não está por detrás de tudo isso? Uma coisa puxa a outra.
- Sem dúvida! Ele exclamou visivelmente satisfeito por ter compartilhado comigo dessa história. Coisas da vida!
Nesse momento a recepcionista se aproximou dizendo:
- Me avisaram que seu carro para Brasília vai demorar ainda uma hora e meia. Sugiro o senhor jantar, pois à noite, na estrada, não tem onde comer.
Jantamos e continuamos a conversar sobre a vida, suas surpresas e histórias que às vezes parecem ficção.
Quando o carro chegou a recepcionista veio me avisar.
Nos despedimos com um forte abraço.
Um carro me levou até Brasília. Era quase meio dia quando as rodas do avião rolaram pela pista de Congonhas.
Durante a viagem pensei em registrar esses fatos que vocês acabaram de ler, pois a vida oferece surpresas através de pequenas coisas...
Quem diria! Todas essas tramas do destino para conhecer esta terra e sua gente tão hospitaleira.
Ao povo de Santa Maria da Vitória, parabéns por ser berço dentre outros ilustres, de Guarany com suas carrancas, Osório Alves de Castro com seu livro "Porto Calendário" e de Jurandi Assis com seus desenhos, pinturas e livros e em breve de novos talentos santamarienses revelados pelas FLIT.