Cristóvão José Zygmunt Wieliczka
O dia se foi e anoiteceu. O clarão da lua cheia e o brilho das estrelas passaram a imperar no céu do sertão.
Um suave vento que vinha do rio deslocava folhas secas e gravetos.
O barulho das aves noturnas, de pequenos animais e insetos também compunha o cenário. Um galopar de cavalos ouvia-se ao longe na estradinha que cortava o mato.
Era Joãozinho e Carlinhos que voltavam de uma pescaria. A estradinha naquele trecho seguia direto para o rio, parecendo como se fosse entrar nele. Quase no encontro dos dois a estradinha e o rio desviavam-se para a mesma direção numa curva acentuada e seguiam paralelos até o cais, na cidade. Lá, a estradinha terminava e o rio seguia seu caminho. Os cavalos conheciam muito bem aquele trecho estreito e Joãozinho e Carlinhos deixavam as rédeas quase soltas. Os dois brincavam e os cavalos pareciam brincar também. Ora era Joãozinho que ia galopando na frente, ora Carlinhos. Quando estavam chegando na curva do rio, os cavalos levaram um susto. Estancaram e ficaram agitados, empinaram e relincharam. Com certo esforço os meninos conseguiram dominá-los. Perceberam no meio do rio dois olhos reluzentes de uma imensa carranca na proa de um barco que parecia vir ao encontro deles. Voltado o silêncio e refeito o susto, os dois meninos puderam ver o amiguinho Jurandi agarrado à carranca. Joãozinho deu um berro e acenou. Jurandi o viu e retribuiu o aceno. Daquele ponto da estradinha voltaram a cavalgar emparelhados com o barco até o cais. Quando chegaram, uma cena pitoresca de lampiões a querosene no alto de algumas estacas que iluminavam o local. Os meninos prenderam os cavalos numa trave e foram ao encontro de Jurandi. À beira do rio ficaram observando a façanha dos remeiros atracando o maior barco da região. O barco era branco e com as bordas e a cabine azuis. No mastro uma pequena bandeira nacional. Tinha nos dois lados da proa, pintado em preto, o nome “Guerreiro”. A carranca multicolorida era tão imponente que metia medo. Era de cedro, madeira de lei. Parecia meio gente meio bicho, o pescoço comprido e uma grande cabeça branca, olhos pintados com tinta dourada fosforescente, nariz rosado, bigode preto, orelhas amarelas, cabeleira preta, uma boca vermelha que parecia querer falar.
O luar e a iluminação dos lampiões provocavam um interessante contraste da imagem invertida do barco refletida na água e levemente distorcida pelas pequenas ondas do rio. A noite avançou e somente eles estavam no cais. A cidade já dormia. Enfim “Guerreiro” atracou e Joãozinho e Carlinhos viram cinco remeiros saindo do barco e, atrás deles, Jurandi com um grande pacote nas mãos. Foram ao seu encontro e contaram o resultado da pescaria e lhe perguntaram o que era aquele pacote. Jurandi contou que no vilarejo, rio acima, seu avô lhe comprara um grande bloco de desenho, lápis preto, borracha e um livro.
- Ué – disse Joãozinho. O que você vai fazer com tudo isso, Jurandi?
- O livro eu vou ler. É do desenhista Percy Lau. Tem bonitas ilustrações. E o material é para eu desenhar.
- Desenhar? – indagaram os dois quase que em coro. em coro.
- Sim – respondeu Jurandi. Desenhar. Venham amanhã cedo em casa que mostro-lhes o que eu sei fazer.
O avô de Jurandi, que estava por perto, ouviu tudo. Como estava cansado e não queria ir até a fazenda naquela hora da noite, perguntou o que os meninos pescadores iriam fazer com os peixes. Os meninos não tinham resposta, apenas encolheram os ombros.
- Então meninos – disse o avô de Jurandi – se vocês concordarem, os remeiros farão para nós uma suculenta peixada e enquanto isso vocês vão poder ficar conversando.
Os dois concordaram com a oferta e os três remeiros que ficaram no barco começaram a preparar a última refeição do dia. Após o jantar, os meninos e dois remeiros foram embora. Jurandi, na despedida, falou para Joãozinho e Carlinhos:
- Então amanhã cedo o encontro é aqui.
Um remeiro ficou tomando conta do barco. O avô foi dormir na cabine e Jurandi foi para o convés. A noite estava muito agradável, o luar e o brilho das estrelas era tão forte que quase dispensava os lampiões. Jurandi pegou seu material e pôs-se a desenhar. Terminado o desenho, deitou-se numa rede e começou a ler o livro. Leu atentamente umas quinze páginas e adormeceu com o silêncio da noite e o balançar do barco. Num certo momento, o livro escorregou de suas mãos e caiu no chão. O barulho fez o remeiro ir até Jurandi, colocar o livro sobre um banquinho e cobrir o menino com uma manta. De manhãzinha Jurandi, após o café, mostrou o desenho para o seu avô e o remeiro e ficou no cais, na frente do barco, aguardando seus dois amigos. Logo chegaram Joãozinho e Carlinhos a cavalo. Vinham pela beirada do rio e Carlinhos da sela empinava uma pipa amarela com uma cauda vermelha. Jurandi pôde ver o entusiasmo de Carlinhos galopando e empinando a pipa. Chegando no cais, os cavalos pararam, e os meninos desceram. Carlinhos enrolou a linha e guardou a pipa atrás da sela. Jurandi mostrou-lhes o desenho. Era uma cena de “Guerreiro” com sua imensa carranca atracado no cais de Santa Maria da Vitória no meio de outros barcos. Os dois viram o desenho, gostaram, mas não deram muita atenção. Logo saíram correndo para soltar a pipa na beira do rio, deixando Jurandi sozinho. Jurandi não ligou muito e, quando estava se preparando para sair dali para ir brincar com eles, ouviu uma voz dizendo:
- Só encurte meu bigode, por favor, pois assim pareço com Salvador Dali.
Jurandi olhou espantado e não viu ninguém. E quem era esse tal de Salvador Dali. Dali de onde? Conheço todo mundo nesta cidade – pensou ele – mas Salvador Dali não conheço não. Ora bolas, era só o que me faltava. E quem será que falou?
Continuando a olhar para os lados, num dado instante estremeceu. Percebeu que aquela voz só podia ter vindo da carranca. Virou-se para ela e fitou. Olhos nos olhos. Jurandi não tinha medo. Olhos nos olhos. Naquele momento a carranca, para a sua total admiração, piscou o olho direito e sorriu. Jurandi não sabia o que fazer. Com seus dez anos de idade, a situação o deixou encabulado. Mas aquilo lhe soou como uma ordem. Correu para dentro do barco, pegou seu lápis e a borracha e encurtou o bigode da carranca. Voltou muito lentamente e desconfiado para frente do barco, ainda não acreditando direito que tudo aquilo estava acontecendo e, meio que sem graça, tomando cuidado para que ninguém o visse, mostrou o desenho para a carranca. Momentos depois a carranca piscou num gesto de aprovação. Só Jurandi viu e descobriu naquele momento que tinha um novo amigo. Subiu no barco e foi até a proa e, com a voz meio trêmula e olhando para os lados, perguntou baixinho:
- Você fala?
- Sim, eu falo – respondeu a carranca. Mas que esse segredo seja só nosso. Se você contar a outra pessoa, essa magia se acaba.
- Pode confiar em mim – disse Jurandi. Não vou contar para ninguém.
- Está bem. Assim, de hoje em diante, nas nossas viagens eu vou contar para você as coisas fantásticas que acontecem no rio Corrente. Mas agora vá brincar com seus amiguinhos que eu fico aqui tomando conta do barco.
Olhando de novo para os lados para ver se ninguém os observava, Jurandi falou para a carranca.
- Eu quero fazer uma pergunta.
- Faça lá – respondeu a carranca.
- Conte-me quem é esse tal de Salvador Dali que eu nunca ouvi falar. Ele mora por aqui?
- Não – respondeu a carranca. É um artista famoso que mora na Europa. Procure se informar nos livros.
- Salvador Dali e agora Europa, era só o que me faltava! Tudo novidade, mas está bem, eu vou procurar nos livros e descobrir. Até mais.
- Até mais – falou a carranca.
Ainda meio atordoado com tudo o que acabara de acontecer, Jurandi, num gesto de carinho, passou a mão sobre a cabeça da carranca, voltou para a cabine do barco e guardou o desenho. Antes de sair, Jurandi voltou para a proa e disse para a carranca:
- De hoje em diante eu vou te chamar de “Guerreiro”.
- Está bem – respondeu “Guerreiro”.
Saiu do barco e foi brincar com Joãozinho e Carlinhos. Não teve dificuldade em achá-los. Ao olhar para o céu avistou um ponto amarelo. Embaixo da pipa, no chão, os cavalos comiam capim. Ao lado, na beira do rio estavam os dois. Jurandi ainda deu uns passos, parou e virou-se para trás. Viu que não tinha ninguém. Acenou para “Guerreiro” e saiu correndo juntar-se a eles.
- “Revista Abigraf”. Edição de jul/ago de 2001. Capa e matéria.
A arte regionalista de Jurandi Assis
Texto de Tânia Galluzzi
Apoiado no desenho e na composição, o artista reconstrói a vida simples e culturalmente rica do nordestino em meados do século passado, resgatando caras lembranças de sua infância.
As lavadeiras, o baile na roça, o bumba-meu-boi, os vaqueiros, o violeiro. Essas e muitas outras são as lembranças de Jurandi Assis, as quais com sensibilidade e muita cor transpõe para as telas, cheias do calor da ensolarada Bahia.
A pintura de Jurandi Assis, como descreve o crítico de arte Jacob Klintowitz no livro sobre o artista, reúne dois pólos. De um lado é dionístico. O artista entrega-se totalmente às percepções, permite emergir as memórias, as alegrias e os cheiros que conheceu e ainda ama. É um homem voltado para o prazer da atividade e com o vigor de quem encontra na expressão os melhores momentos que conhece. Por outro lado, ele organiza geometricamente o espaço, cuida das passagens cromáticas e planeja com detalhes a visualidade da obra.
Nascido em 1939 em Santa Maria da Vitória, BA, o assunto da pintura de Jurandi Assis é a vida do interior brasileiro da primeira metade do século passado. É rural, interiorano, provinciano. Mais do que tudo isso, afirma o crítico e amigo pessoal do artista, é uma pintura que se refere a um modo simples de viver e existir. Não há dúvidas metafísicas nesta manifestação artística, mas o inventário do cotidiano. Os assuntos são os pássaros, o carnaval, a natividade, a pesca. Uma comunidade rural definida e estruturada para uma existência básica.
Apesar de sua pintura não permitir o vazio e de seu caráter descritivo, ela é silenciosa, apoiada no desenho e na composição.
Os personagens são perfeitamente delimitados e o espaço é severamente organizado.desta maneira, o artista indica ao seu público que o seu mundo é o do pensamento, do desejo, da imaginação, da memória idealizada. Nada está entregue ao acaso, tudo foi estudado à exaustão. Mesmo que o planejamento das obras, os estudos preparatórios,não sejam exaustivos, a vivência imaginativa da ficção é minuciosamente desenvolvida.
Jurandi descobriu o desenho aos sete anos, quando uma bordadeira a serviço de sua mãe deu-lhe alguns rabiscos para copiar. O suporte para tal tentativa foram as paredes da sala, que ficaram cobertas pelos riscos tortuosos do menino. Quando entrou para a escola já chegou com fama de desenhista, e o apoio das professoras, conta o artista, foi fundamental pára que ele se tornasse cada vez mais próximo dos lápis e do papel.
Da publicidade à pintura
Aos 17 anos, Jurandi decidiu partir para São Paulo a fim de viver a arte. Porém, a vida na cidade grande era infinitamente mais difícil do que ele imaginava e seu primeiro emprego foi como balconista em uma papelaria. Vendo na publicidade uma saída, sempre que podia mostrava seus desenhos para os clientes em busca de uma chance. E ela apareceu na figura de Oscar Costa, ilustrador, publicitário e artista plástico, que passou a receber Jurandi em seu estúdio, nos fins de tarde, permitindo que ele aprimorasse seus conhecimentos técnicos. Algum tempo depois, Oscar Costa foi convidado para trabalhar no departamento de arte da Avon, levando Jurandi consigo. Na empresa, o artista encontrou um ambiente favorável não só para desenvolver a linguagem publicitária como a pintura, uma vez que a companhia abria espaço para pequenas exposições. Foi numa dessas oportunidades que seu caminho como pintor deu uma guinada.”Um dia levei à Avon uma paisagem impressionista, que foi analisada e considerada boa pelos colegas do departamento. Um deles, contudo, disse que dentro daquela escola eu nunca me destacaria, aconselhando-me a desenvolver um estilo mais pessoal, no qual pudesse evidenciar os costumes e o folclore da minha terra natal. Fiquei chocado num primeiro momento, mas decidi apostar nessa direção, esquecer as referências e dar asas à minha imaginação”.
Já fora da Avon, mas mantendo a atividade publicitária para seu sustento e a artística por vocação, Jurandi fez a sua primeira individual em 1974, na União Cultural Brasil Estados Unidos, com a apresentação do artista plástico Rebolo. A partir daí o caminho estava definitivamente aberto e diversas exposições se sucederam. A mais recente aconteceu entre junho e julho deste ano, na Casa da Fazenda, em São Paulo, com a apresentação de 24 telas.
Em 1996, o artista passou a dedicar-se apenas à pintura e à viabilização de mais um sonho, a edição de um livro autobiográfico.
Em setembro do ano passado, o projeto foi concretizado com o lançamento da obra, Jurandi Assis, pintor: O Inventário do Cotidiano. Com o ensaio crítico de Jacob Klintowitz e o projeto gráfico do próprio Jurandi, o livro foi fotolitado e impresso pela Laserprint, com tiragem de 1.500 exemplares, obra que já foi inclusive incorporada ao currículo de alguns colégios, como São Bento e o Visconde de Porto Seguro, de Valinhos, interior de São Paulo.jurandi se prepara, agora, para a edição de um segundo livro, para o qual já tem 480 desenhos e 10 telas prontas.( junho de 2001)
- “Galeria em Tela”. Revista. Edição Especial nº5. Editora On-Line. - 2003
Edição histórica, apresentando trabalhos de grandes artistas em exposição no Masp Centro, em São Paulo, faz uma homenagem ao Grupo dos 19, retratando o famoso movimento artístico de 1947. Uma oportunidade imperdível de conhecer arte unida à história. Dentro um encarte com desenhos de Jurandi Assis para serem exercitados.