1946. Ano em que fui apresentado a D. Rosa Oliveira Magalhães, primeira professora e amiga, pessoa extraordinária em todos os sentidos, ser humano de incomparável bondade, cristã, sem nenhuma sombra de dúvida.
Fui levado ao Colégio Rosa Oliveira Magalhães pelas mãos de tia Lourdes, que havia dito à minha mãe tratar-se de um colégio evangélico, de metodologia moderna. Naquela instituição de ensino, a palmatória havia sido substituída por amor e compreensão.
Era um dia especial. Eu estava eufórico. Ia estudar numa escola moderna e civilizada. Iria, finalmente, conhecer D. Rosa.
Entramos no prédio do colégio. Eu segurava fortemente a mão de minha tia. Dirigimo-nos para a sala onde se encontrava D. Rosa.
Ela estava em pé junto ao quadro-negro, explicando para a classe um problema de aritmética, em voz alta, porém, de certa forma, carinhosa.
Minha tia pediu para que eu esperasse um pouco, pois a professora estava no meio de uma aula e não deveria ser interrompida.
Terminadas as explicações, D. Rosa, percebendo nossa presença, veio em nossa direção. À medida que ela se aproximava, pude compreender, apesar da pouca idade, o porquê de seu prestígio e de sua fama. Estatura mediana, negra, olhos verdes, bem-vestida, embora com simplicidade, a fronte demonstrando grande inteligência. Emoldurada por cabelos crespos e grisalhos, bem-penteados e presos atrás da cabeça por uma fita larga, de cor azul-escuro, era uma figura delicada, que inspirava bondade.
Seu sorriso natural era um misto de compreensão e carinho. De andar ereto, parecia flutuar, e aqueles olhos, ah!, pareciam penetrar em nossa alma, não para censurar, mas para reforçar tudo de bom que havia em nós.
Eu era uma criança observadora, capaz de perceber um espírito iluminado, quando frente a frente com ele.
Mal sabia que meu futuro de artista plástico estaria ligado àquela senhora, cuja bondade e inteligência eram muito fáceis de perceber.
Apresentado a D. Rosa pela minha tia, daí para a frente recebi dela toda atenção e carinho, bem além do esperado para um aluno em início de ano letivo.
Minha família, tanto do lado paterno quanto do lado materno, era bem-situada financeiramente e minha vinda para São Paulo deu-se em virtude do meu talento artístico, impossível de desenvolver numa cidade pequena e esquecida lá no sertão baiano.
Bem cedo, aos dez anos, já era visível para todos minha vocação para as artes plásticas. Desenhava com extrema facilidade, sempre evidenciando a figura humana. Passava horas copiando figuras dos antigos gibis, surpreendendo amigos e familiares.
Os anos foram se passando, fui crescendo e meu talento artístico também.
Eu sentia necessidade de aprender mais e mais; contudo, sendo o único desenhista da cidade, não havia como progredir e desenvolver o talento.
Com o passar do tempo, devido a problemas familiares, fui morar com meus avós paternos. Nesse período da vida, já não me contentava em copiar gibis. Mas como evoluir na arte se não havia mestre, bons livros, pincéis, tintas e telas? Todo esse material era impossível de ser encontrado em Santa Maria da Vitória.
Em 1956, vi numa revista a foto de um grande peixe-espada, no auge de um grande salto, totalmente fora d’água, em todo o seu esplendor.
Era o máximo. Tinha de pintá-lo! Mas onde? Como?
Meu avô havia viajado, não havendo, portanto, necessidade de sua autorização. Assim ficou mais fácil escolher o local: teria de ser no salão principal de nossa casa.
Dei início aos preparativos. Surgiram, então, vários problemas. Não havia pincéis nem tintas. Decidi improvisar, fazendo eu mesmo os pincéis e, na falta de tintas apropriadas, usaria as destinadas a pintar portas e janelas. Para fazer os pincéis saí em busca de um cavalo, entre os muitos que meu pai possuía.
Minha vontade de pintar era tão grande que, ao ver o primeiro cavalo, fui direto para ele, esquecendo o que meu pai havia ensinado: nunca se aproximar de um animal por trás, sempre pela frente, alisando o pescoço, depois o dorso e, em seguida, pegando a cauda, puxá-la de lado e fazer o que se pretende.
Desobedeci a todas as regras, aproximando-me por trás, com a mão estendida para a cauda. Percebendo minha aproximação, o cavalo desferiu-me um potente coice na barriga, atirando-me a três metros de distância.
Não desanimei. Assim que passou a dor daquele inesperado coice, procurei um animal mais manso e, seguindo as regras básicas de aproximação, cortei o material necessário para a confecção de três pincéis.
Estava finalmente pronto o material necessário para meu primeiro trabalho a óleo. Eu deveria agir rápido, pois meu avô poderia retornar da viagem a qualquer momento. Comecei a fazer o esboço, que, uma vez iniciado, teria de ir até o final.
Dito e feito. Quando meu avô retornou, o mural já estava quase terminado. Não me lembro do tamanho exato, talvez um metro por dois, e ficou tão famoso, que se tornou local de visitação pública, para orgulho de meu avô.
A vinda para São Paulo
No final do mês de julho de 1956, encontrei-me com D. Rosa, perto do Mercado Municipal. Ela me perguntou se gostaria de ir com ela para São Paulo. Seria uma viagem de férias, mas, dependendo do desenrolar dos acontecimentos e da adaptação à grande metrópole paulistana, eu poderia permanecer na cidade trabalhando e estudando.
Como já disse anteriormente, D. Rosa era minha professora e diretora de um colégio evangélico. Ela costumava visitar São Paulo todos os anos, aproveitando a viagem para gozar férias e para entrar em contato com a cúpula da Igreja Presbiteriana Unida.
Meus pais não se opuseram; faltava apenas convencer meu avô. No começo foi difícil, mas aos poucos ele cedeu, com a condição de retornar a Santa Maria da Vitória se não houvesse condições seguras para minha permanência em São Paulo.
Partimos no final do mês de novembro de 1956. Viajamos por via fluvial, rumo a Bom Jesusda Lapa, onde embarcaríamos num vapor, com destino a Pirapora. A partir daí, seguiríamos de trem até a capital de São Paulo.
Chegamos a Bom Jesus da Lapa e embarcamos num vapor muito limpo e organizado, cujo nome não me recordo. Foi uma viagem maravilhosa. Nosso grupo era composto de doze pessoas, a maioria jovens da minha idade. Estava criado, portanto, o ambiente favorável às brincadeiras divertidas, o que tornou aquela viagem inesquecível.
D. Rosa costumava dizer que, embora dispondo de três meses de férias, aqueles quinze dias que o vapor levava para chegar até Pirapora representavam, sem dúvida, suas verdadeiras férias, pela calma e pela beleza da paisagem, que se modificava à medida que o vapor subia vagarosamente o rio São Francisco.
Sim, eu posso confirmar: foram quinze dias de absoluta tranqüilidade. O vapor seguia devagar, parando em quase todas as cidades à margem do rio, para embarque e desembarque de passageiros, mercadorias e também para se abastecer da lenha destinada à caldeira do barco.
A comida servida a bordo era de primeira qualidade, havendo até a tradicional disputa entre os passageiros para sentar-se à mesa do capitão.
E o vapor prosseguia viagem, impulsionado pela grande roda que ficava na parte de trás, subindo sem pressa o rio São Francisco, até alcançar seu destino final: Pirapora.
O restante da viagem até São Paulo foi feita de trem.