Cristóvão José Zygmunt Wieliczka

O dia se foi e anoiteceu. O clarão da lua cheia e o brilho das estrelas passaram a imperar no céu do sertão.
Um suave vento que vinha do rio deslocava folhas secas e gravetos. O barulho das aves noturnas, de pequenos animais e insetos também compunha o cenário. Um galopar de cavalos ouvia-se ao longe na estradinha que cortava o mato.
Era Joãozinho e Carlinhos que voltavam de uma pescaria. A estradinha naquele trecho seguia direto para o rio, parecendo como se fosse entrar nele. Quase no encontro dos dois a estradinha e o rio desviavam-se para a mesma direção numa curva acentuada e seguiam paralelos até o cais, na cidade. Lá, a estradinha terminava e o rio seguia seu caminho. Os cavalos conheciam muito bem aquele trecho estreito e Joãozinho e Carlinhos deixavam as rédeas quase soltas. Os dois brincavam e os cavalos pareciam brincar também. Ora era Joãozinho que ia galopando na frente, ora Carlinhos. Quando estavam chegando na curva do rio, os cavalos levaram um susto. Estancaram e ficaram agitados, empinaram e relincharam. Com certo esforço os meninos conseguiram dominá-los. Perceberam no meio do rio dois olhos reluzentes de uma imensa carranca na proa de um barco que parecia vir ao encontro deles. Voltado o silêncio e refeito o susto, os dois meninos puderam ver o amiguinho Jurandi agarrado à carranca. Joãozinho deu um berro e acenou. Jurandi o viu e retribuiu o aceno. Daquele ponto da estradinha voltaram a cavalgar emparelhados com o barco até o cais. Quando chegaram, uma cena pitoresca de lampiões a querosene no alto de algumas estacas que iluminavam o local. Os meninos prenderam os cavalos numa trave e foram ao encontro de Jurandi. À beira do rio ficaram observando a façanha dos remeiros atracando o maior barco da região. O barco era branco e com as bordas e a cabine azuis. No mastro uma pequena bandeira nacional. Tinha nos dois lados da proa, pintado em preto, o nome “Guerreiro”. A carranca multicolorida era tão imponente que metia medo. Era de cedro, madeira de lei. Parecia meio gente meio bicho, o pescoço comprido e uma grande cabeça branca, olhos pintados com tinta dourada fosforescente, nariz rosado, bigode preto, orelhas amarelas, cabeleira preta, uma boca vermelha que parecia querer falar.

O luar e a iluminação dos lampiões provocavam um interessante contraste da imagem invertida do barco refletida na água e levemente distorcida pelas pequenas ondas do rio. A noite avançou e somente eles estavam no cais. A cidade já dormia. Enfim “Guerreiro” atracou e Joãozinho e Carlinhos viram cinco remeiros saindo do barco e, atrás deles, Jurandi com um grande pacote nas mãos. Foram ao seu encontro e contaram o resultado da pescaria e lhe perguntaram o que era aquele pacote. Jurandi contou que no vilarejo, rio acima, seu avô lhe comprara um grande bloco de desenho, lápis preto, borracha e um livro.

- Ué – disse Joãozinho. O que você vai fazer com tudo isso, Jurandi?
- O livro eu vou ler. É do desenhista Percy Lau. Tem bonitas ilustrações. E o material é para eu desenhar.
- Desenhar? – indagaram os dois quase que em coro. em coro.
- Sim – respondeu Jurandi. Desenhar. Venham amanhã cedo em casa que mostro-lhes o que eu sei fazer.

  O avô de Jurandi, que estava por perto, ouviu tudo. Como estava cansado e não queria ir até a fazenda naquela hora da noite, perguntou o que os meninos pescadores iriam fazer com os peixes. Os meninos não tinham resposta, apenas encolheram os ombros.

- Então meninos – disse o avô de Jurandi – se vocês concordarem, os remeiros farão para nós uma suculenta peixada e enquanto isso vocês vão poder ficar conversando.

  Os dois concordaram com a oferta e os três remeiros que ficaram no barco começaram a preparar a última refeição do dia. Após o jantar, os meninos e dois remeiros foram embora. Jurandi, na despedida, falou para Joãozinho e Carlinhos:

- Então amanhã cedo o encontro é aqui.

 Um remeiro ficou tomando conta do barco. O avô foi dormir na cabine e Jurandi foi para o convés. A noite estava muito agradável, o luar e o brilho das estrelas era tão forte que quase dispensava os lampiões. Jurandi pegou seu material e pôs-se a desenhar. Terminado o desenho, deitou-se numa rede e começou a ler o livro. Leu atentamente umas quinze páginas e adormeceu com o silêncio da noite e o balançar do barco. Num certo momento, o livro escorregou de suas mãos e caiu no chão. O barulho fez o remeiro ir até Jurandi, colocar o livro sobre um banquinho e cobrir o menino com uma manta. De manhãzinha Jurandi, após o café, mostrou o desenho para o seu avô e o remeiro e ficou no cais, na frente do barco, aguardando seus dois amigos. Logo chegaram Joãozinho e Carlinhos a cavalo. Vinham pela beirada do rio e Carlinhos da sela empinava uma pipa amarela com uma cauda vermelha. Jurandi pôde ver o entusiasmo de Carlinhos galopando e empinando a pipa. Chegando no cais, os cavalos pararam, e os meninos desceram. Carlinhos enrolou a linha e guardou a pipa atrás da sela. Jurandi mostrou-lhes o desenho. Era uma cena de “Guerreiro” com sua imensa carranca atracado no cais de Santa Maria da Vitória no meio de outros barcos. Os dois viram o desenho, gostaram, mas não deram muita atenção. Logo saíram correndo para soltar a pipa na beira do rio, deixando Jurandi sozinho. Jurandi não ligou muito e, quando estava se preparando para sair dali para ir brincar com eles, ouviu uma voz dizendo:

- Só encurte meu bigode, por favor, pois assim pareço com Salvador Dali.

 Jurandi olhou espantado e não viu ninguém. E quem era esse tal de Salvador Dali. Dali de onde? Conheço todo mundo nesta cidade – pensou ele – mas Salvador Dali não conheço não. Ora bolas, era só o que me faltava. E quem será que falou?

 Continuando a olhar para os lados, num dado instante estremeceu. Percebeu que aquela voz só podia ter vindo da carranca. Virou-se para ela e fitou. Olhos nos olhos. Jurandi não tinha medo. Olhos nos olhos. Naquele momento a carranca, para a sua total admiração, piscou o olho direito e sorriu. Jurandi não sabia o que fazer. Com seus dez anos de idade, a situação o deixou encabulado. Mas aquilo lhe soou como uma ordem. Correu para dentro do barco, pegou seu lápis e a borracha e encurtou o bigode da carranca. Voltou muito lentamente e desconfiado para frente do barco, ainda não acreditando direito que tudo aquilo estava acontecendo e, meio que sem graça, tomando cuidado para que ninguém o visse, mostrou o desenho para a carranca. Momentos depois a carranca piscou num gesto de aprovação. Só Jurandi viu e descobriu naquele momento que tinha um novo amigo. Subiu no barco e foi até a proa e, com a voz meio trêmula e olhando para os lados, perguntou baixinho:

- Você fala?
- Sim, eu falo – respondeu a carranca. Mas que esse segredo seja só  nosso. Se você contar a outra pessoa, essa magia se acaba.

- Pode confiar em mim – disse Jurandi. Não vou contar para ninguém.

- Está bem. Assim, de hoje em diante, nas nossas viagens eu vou contar para você as coisas fantásticas que acontecem no rio Corrente. Mas agora vá brincar com seus amiguinhos que eu fico aqui tomando conta do barco.

 Olhando de novo para os lados para ver se ninguém os observava, Jurandi falou para a carranca.

- Eu quero fazer uma pergunta.
- Faça lá – respondeu a carranca.
- Conte-me quem é esse tal de Salvador Dali que eu nunca ouvi falar. Ele mora por aqui?
- Não – respondeu a carranca. É um artista famoso que mora na Europa. Procure se informar nos livros.
- Salvador Dali e agora Europa, era só o que me faltava! Tudo novidade, mas está bem, eu vou procurar nos livros e descobrir. Até mais. 
- Até mais – falou a carranca.

Ainda meio atordoado com tudo o que acabara de acontecer, Jurandi, num gesto de  carinho, passou a mão sobre a cabeça da carranca, voltou para a cabine do barco e guardou o desenho. Antes de sair, Jurandi voltou para a proa e disse para a carranca:

- De hoje em diante eu vou te chamar de “Guerreiro”.
- Está bem – respondeu “Guerreiro”.

Saiu do barco e foi brincar com Joãozinho e Carlinhos. Não teve dificuldade em achá-los. Ao olhar para o céu avistou um ponto amarelo. Embaixo da pipa, no chão, os cavalos comiam capim. Ao lado, na beira do rio estavam os dois. Jurandi ainda deu uns passos, parou e virou-se para trás. Viu que não tinha ninguém. Acenou para “Guerreiro” e saiu correndo juntar-se a eles.

Conto: O passeio de domingo

Passaram-se muitos dias em que Jurandi não via “Guerreiro”.

Ficara todo esse tempo na fazenda, longe do rio, em casa, indo para a escola na cidade, estudando, desenhando e brincando com os seus gatos, seus cachorros, sua jandaia e com seus amigos. Na fazenda havia outros animais, araras, veados, cabritos, tucanos, parecendo um pequeno zoológico. Seu avô gostava disso.

No domingo, logo depois da missa, o seu avô fez-lhe uma surpresa. Os dois subiram na charrete e um capataz saiu dirigindo ligeiro a parelha de cavalos pela estrada em direção à cidade.

O sol era forte e a terra seca fazia a charrete levantar uma poeira por onde passava. Atravessaram a cidade e logo ele descobriu para onde iam. Já estavam quase chegando, quando num salto levantou-se e ficou em pé sobre o assento, apoiando as mãos sobre os ombros do avô.

De pé, pôde avistar “Guerreiro” atracado no cais. Como sempre majestoso, imponente, o maior barco de Santa Maria da Vitória.

E tão rapidamente voltou a sentar ao lado do avô que ele nem teve tempo de lhe dar um pito. O capataz ainda freava a charrete quando Jurandi pulou no chão e saiu correndo em direção ao barco.

Havia muita gente passeando no cais naquela manhã de domingo.

Assim que se aproximou do barco, parou e olhou nos olhos de “Guerreiro”, mas este não emanou nenhum gesto, nem sorriu e nem piscou. Porém, estranhamente, o barco se mexeu provocando pequenas ondas ao seu redor.

Jurandi entendeu o sinal e falou baixinho:

- Bom dia!

“Guerreiro” permaneceu calado.

Jurandi já estava no barco ao lado da carranca quando seu avô o avisou que aquela não seria uma viagem longa, apenas um passeio de algumas horas para visitar um amigo que tinha voltado de uma caçada e que morava na outra margem, rio abaixo, na direção do “Velho Chico”. Jurandi nem deu muita atenção ao avô, o que lhe interessava era poder conversar com “Guerreiro”.

Afinal, este lhe prometera contar e mostrar coisas fantásticas que acontecem no rio Corrente.

No barco estavam Jurandi, seu avô, o mestre e oito remeiros, e “Guerreiro”
naturalmente.

Um ajudante no cais soltou as amarras. O avô de Jurandi sentou-se sob a parte coberta da popa, o mestre assumiu o leme, os remeiros iniciaram seu trabalho. Com o barco solto, começaram as manobras e os remeiros colocaram o barco em movimento.

A distância que tinham de percorrer era de uns três quilômetros. Jurandi olhava para trás e via que devagarzinho as pessoas, a cidade, tudo, enfim, ia ficando cada vez menor. O barco ia a jusante, portanto a favor da correnteza.

O balançar do barco fazia com que a proa ora estivesse para cima, ora para baixo, parecendo uma gangorra, e Jurandi agarrado na carranca se divertia com isso, sentia-se cavalgando.

O barco seguia seu curso. Todos estavam nos seus postos, o mestre no leme.
Um dos remeiros ficava olhando o tempo todo para a água para desviar o barco dos perigosos bancos de areia, e os demais na sua função.

A paisagem naquele trecho era muito bonita, e havia muita vegetação e palmeiras nas margens do rio. Às vezes passavam cardumes de grandes peixes e Jurandi encantado gritava:

- Olha, olha, olha!

O avô de Jurandi pensava que ele falava para os remeiros perto da proa. Na verdade, Jurandi falava para “Guerreiro” que via e tudo sabia.

Não raro, um bando de passarinhos multicoloridos passava voando fazendo uma algazarra no ar. Da proa do barco Jurandi podia avistar umas grandes e solitárias borboletas azuis com suas asas reluzentes que atravessavam o rio, fazendo paradas nos bancos de areia.

- Será que conseguiriam? – pensou ele.

Aquelas coisas todas, as rajadas de vento soprando forte no meio do rio, o sol quente e os respingos de água traziam uma sensação indescritível e Jurandi se sentia o dono do rio “cavalgando” sobre “Guerreiro”.

Num dado momento, uma jandaia surgiu num vôo rasante e, depois de dar duas voltas ao redor deles, aproximou-se e sentou na cabeça de “Guerreiro”.
Jurandi ficou admirado, reconheceu a ave, era a sua jandaia, e o que é que ela estava fazendo ali.

O avô de Jurandi, o mestre e os remeiros viram tudo, mas não deram muita atenção ao fato. Aquela ave era uma espécie comum na região, só o que ninguém sabia é que era a jandaia de Jurandi.

Nisso, Jurandi ouve a voz de “Guerreiro” chamando por ele, que responde:

- Oi, bom dia mais uma vez. Finalmente você falou!

- Bom dia, menino Jurandi. Hoje você vai saber quem é que evita muitos acidentes aqui no rio. São as jandaias que guiam as embarcações, ajudando as carrancas a desviar dos perigosos bancos de areia.

- Ué, disse Jurandi. Todas as carrancas falam? E as jandaias guiam como? E como é que a minha jandaia veio para aqui?

- Ué, digo eu, respondeu “Guerreiro”. Eu não sabia que a jandaia é sua amiga, uma feliz coincidência. Eu só sei que as jandaias guiam e protegem as carrancas. Esse é o nosso novo segredo.

- Protegem como?

- Pois é, agora você vai ver o que vai acontecer, respondeu “Guerreiro”.

De repente a jandaia saiu voando e batendo as asas coloridas. Do alto, a jandaia mostrou para “Guerreiro” o caminho que deveria seguir. Por um pequeno lapso de tempo, sem nenhum comando, seja dos remeiros ou do leme, o barco obedecia.

Os remeiros e o mestre não entendiam como aquilo era possível. Estupefatos, atribuíam o fenômeno à correnteza. “Guerreiro” era quem comandava o barco.
Logo depois tudo retornou à normalidade. Os bancos de areia tinham ficado para trás.

A jandaia voltou a sentar-se sobre a cabeça de “Guerreiro”. E Jurandi, que vira e entendera tudo, resolveu naquela hora dar um nome à jandaia, falando baixinho para os dois ouvirem.

- Jandaia, de hoje em diante eu vou te chamar de “Regente”.

- Bonito nome, disse “Guerreiro”.

“Regente” olhou para Jurandi. Pulou sobre seu ombro e esfregou sua cabeça contra a cabeça de Jurandi. Em seguida saiu voando até a perderem de vista.

Jurandi não se preocupou. O resto daquele percurso seguiu agarrado à carranca. A diversão continuava. O barco ia balançando para cima e para baixo e a água batendo na proa respingava para todos os lados.

Finalmente chegaram. O avô de Jurandi saltou do barco e o prendeu no galho baixo de uma grande árvore que estava à beira da água. Um ancoradouro muito improvisado, porém seguro.

Jurandi, o mestre e os remeiros saltaram em seguida. Uma vez o barco preso, saíram para a visita. O mestre ia à frente abrindo o caminho no meio do mato com um imenso facão. Atrás dele quatro remeiros faziam o mesmo. Em seguida ia Jurandi e seu avô. Atrás mais quatro remeiros.

Havia cobras venenosas na região. O sol alto indicava que era hora do almoço. Após meia hora de caminhada, venceram o mato e chegaram ao sítio no topo da colina. A casa era simples e toda cercada por uma larga varanda.

Da chaminé saia uma fumaça que ia direto para o céu e o vento espalhava o cheiro de boa comida. Após os cumprimentos e muita conversa, almoçaram uma generosa feijoada. Na hora da sobremesa muita fruta e café.

O avô de Jurandi pegou um violão que estava na varanda e cantarolou uma velha canção. Todos o acompanharam, inclusive Jurandi. Após a cantoria, um forte sono bateu neles. Os remeiros foram dormir embaixo de uma árvore, enquanto o mestre preferiu ficar catando frutas no mato.

Um remeiro ficou de prontidão. Jurandi se estendeu numa rede e cochilou um pouco. O calor da tarde era intenso. O avô de Jurandi e seu amigo fizeram o mesmo, cada um deitou-se numa rede e dormiu.

Passado um certo tempo o amigo do avô de Jurandi começou a roncar forte e um cachorro começou a latir. Todos acordaram. O avô de Jurandi olhou para o chão e, pela sombra, deduziu que era hora de ir embora.

Despediram-se e voltaram para o barco. Um dos remeiros trazia um saco cheio de frutas. O caminho até o barco foi mais rápido, já estava aberto.
O mais penoso viria agora. Navegar a montante.

Mas os fortes remeiros venciam a correnteza, varejada atrás de varejada.
No meio do caminho “Regente” apareceu e tudo se repetiu, só que dessa vez não pousou nem na cabeça de “Guerreiro” e nem no ombro de Jurandi.
Apenas, ao terminar sua missão, deu uma volta ao redor do barco, emanou seu canto e voou.

“Guerreiro” continuava a navegar solene, não se incomodando com a água que batia na proa respingando para todos os lados. Quando atracaram em Santa Maria da Vitória era tardinha. Os remeiros estavam exaustos.
Desceram do barco e foram embora.

Só ficou Jurandi. O seu avô, a uma boa distância, o aguardava na charrete com o capataz. Já não havia quase mais ninguém no cais.

Jurandi passou a mão na cabeça de “Guerreiro” num gesto de despedida e falou.

- Hoje eu não tenho mais tempo, meu avô está me chamando, mas no próximo domingo eu venho aqui e a gente conversa.

- Então fique com Deus menino e até domingo, disse “Guerreiro”.

Ao descer do barco, viu um homem ascendendo os lampiões a querosene.
Subiu na charrete ao lado do avô e começou a bocejar. Estava cansado, mas ansioso para chegar na fazenda para ver se “Regente” estava lá.

No meio do passeio de volta, ao olhar para trás, viu uma jandaia sentada no bagageiro da charrete. Não teve dúvidas, era “Regente”, e deu-lhe uma piscada.

“Regente” abanou a cabeça e saiu voando.

A jandaia chegou primeiro na fazenda. Jurandi chegou dormindo nos braços do avô.
Crônica: O menino Jurandi Assis
Cristóvão José Zygmunt Wieliczka

A história começa no município de Santa Maria da Vitória, à beira do rio Corrente, no agreste sertão baiano.
Era o ano de 1939, no finalzinho do mês de março, numa tardinha quente, na praça central, na porta do cartório, um imponente e velho sobrado.
Pela janela da sala de entrada via-se o vermelhão do poente, contrastando com o azul do céu que provocava um cenário maravilhoso e um reflexo encantador nas águas aparentemente mansas do rio.
Ao longe, no horizonte distante, os campos e os morros confundiam-se na mistura das cores do dia que ia morrendo.
O sino da igreja matriz em frente ao cartório bateu seis vezes.
Era a hora mágica, a hora da Ave Maria.
Dentro do cartório, um burburinho. Registrava-se o nascimento de uma criança do sexo masculino.
Era Jurandi Queiros Assis. Filho de família razoavelmente abastada e numerosa.
Descendente de avós espanhóis e pais brasileiros.
O tempo passava e Jurandi saiu do colo da mãe e do berço, aprendeu a andar e aprendeu a falar.
O tempo passava e o menino crescia no meio das tradições, folclore e costumes locais. Era um Brasil rústico, um Brasil distante, um Brasil quase perdido no mundo.
O tempo avançava.
Aos seis anos Jurandi ganhou do seu pai um tinteiro de cristal. Não era um brinquedo, era um tinteiro. Naquela época molhava-se a pena da caneta na tinta para escrever.
Jurandi notou que o tinteiro de cristal produzia feixes de luzes coloridas ao ser exposto à luz do sol. Jurandi se encantou com as cores.
O tempo passava e, como toda criança, Jurandi foi à escola. Jurandi teve seus cadernos, livros, régua, borracha, lápis preto, caixa de lápis de cor e blocos de papel.
Jurandi começou a aprender as coisas, começou a ler, começou a escrever e começou a desenhar.
Jurandi era um menino muito esperto e curioso, e descobriu que aquela cidadezinha à beira do rio, apesar de quase perdida no mundo, era cheia de atrações, cheia de movimento.
Sua própria casa era grande e rodeada por um enorme quintal. Uma verdadeira chácara para os padrões atuais.
Ao seu redor brincavam as crianças da vizinhança soltando pipas. Também trabalhavam e circulavam os vaqueiros, os cavaleiros, os lenhadores, as pilandeiras, enfim, gente do campo.
Jurandi depois da escola ficava às vezes na varanda da cozinha da sua casa por horas vendo e desenhando as crianças a brincar. Com lápis e papel na mão, Jurandi traçava suas linhas. Linhas retas, linhas curvas, traços fortes, traços fracos. Sombras.
Pronto, mais um desenho estava pronto: Meninos soltando pipas.
Jurandi guardava seus desenhos numa grande pasta amarela, presente de sua avó.
O tempo passava.
Dia após dia, de segunda à sexta-feira, Jurandi ia à escola. Jurandi estudava.
Jurandi desenhava.
Jurandi brincava, mas também observava tudo o que acontecia.
Havia freqüentemente nas tardes um vai e vem de animais e carros de boi passando pela cidade.
No rio Corrente transitavam os pescadores com seus barcos ostentando imponentes carrancas do mestre Guarany.(*)
De manhãzinha viam-se as lavadeiras na beira do rio, e à noitinha homens com baldes iam buscar água.
Barco novo atracado no cais era curiosidade geral. Toda cidade ia ver.
A cidadezinha estava sempre em movimento. Por todos os cantos havia gente, adultos e crianças.
Na pracinha as crianças costumavam jogar bola.
Na ladeira, ao lado de sua casa, um grupinho vivia a correr atrás de aros.
Na beira do rio uma turminha jogava bolinha de gude e brincava com as jandaias.
Nas ruas, as baianas com seus tabuleiros vendiam doces, flores e frutas.
Pelos bares da cidade, músicos tocavam e cantavam.
Nos armazéns homens e mulheres compravam e vendiam.
Um homem com um realejo e uma jandaia aparecia a cada dia numa outra esquina.
Aos domingos surgiam dos arredores os violeiros e o padre rezava a santa missa na igrejinha matriz.
Quando era festa de dia-santo ou alguém morria, lá se iam as infindáveis procissões, ora em torno da praça central, ora direto para o cemitério.
Vez ou outra passava pela cidade um grupo de retirantes dirigindo-se para o sul. Todo mundo ficava olhando e pensando qual seria o destino deles.
Pois é, movimento era que não faltava.
Jurandi desenhava todas essas figuras.
Às vezes, como já foi dito, Jurandi ficava na varanda da sua casa desenhando, outras vezes saia a desenhar pela cidade, ora na beira do rio Corrente, ora no campo, longe de casa, levando sempre consigo seu material de desenho.
Lápis, borracha, papel e prancheta.
O tempo passava.
E ano após ano que passava, Jurandi estudava e desenhava.
Todos na cidade gostavam e pediam seus desenhos.
Jurandi passou a ficar famoso numa cidadezinha muito pequena.
Num certo momento, despertou em Jurandi a vocação para ser artista.
Jurandi cresceu.
Jurandi estava moço quando descobriu que, para realizar o seu sonho de ser artista, não podia mais ficar em Santa Maria da Vitória, pois a cidadezinha era pequena demais.
Jurandi tomou uma decisão. Ir para São Paulo. Um novo mundo. Uma grande aventura de vida o esperava.
Jurandi aos dezessete anos saiu de sua cidade natal, deixando todos os parentes e amigos de infância.
Na viagem de muitas peripécias Jurandi levou pouca bagagem, muita saudade e imagens na memória.
Imagens dos vaqueiros, dos cavaleiros, dos lenhadores, das pilandeiras, da gente do campo, das lavadeiras, dos pescadores, dos barcos, das carrancas do rio Corrente, dos meninos soltando pipas, dos meninos correndo atrás dos aros, dos meninos jogando bola, das crianças jogando bolinha de gude e brincando com as jandaias, das floristas, das baianas com seus tabuleiros vendendo doces e frutas, do homem do realejo, das cenas de carnaval, dos retirantes, do bumba-meu-boi, dos violeiros, das tradições. Enfim, imagens de tudo o que vira e vivera até então.
Era o ano de 1956 quando Jurandi chegou em São Paulo.
Um susto. O tamanho da cidade.
Em São Paulo Jurandi se hospedou numa pensão perto do centro.
Saia a toda hora para conhecer a cidade e à procura do seu primeiro emprego. Finalmente achou, começou como office boy. Depois foi balconista e em seguida auxiliar de escritório.
Sempre desenhando nas horas de folga as imagens que lhe ficaram na memória.
Fez novos relacionamentos e através de um amigo engajou-se numa empresa para ser desenhista.
Nessa empresa progrediu e também foi se profissionalizando.
Uma novidade. Jurandi, agora, além de desenhar começou a pintar. Não mais somente lápis e papel faziam parte da sua vida, mas também as tintas, as telas, os cavaletes e os pincéis.
Como homem comum, nada lhe foi muito diferente na vida.
Jurandi trabalhava.
Jurandi namorou e casou. Jurandi teve filhos. Jurandi comprou sua casa.
E no meio de tudo isso, persistia sempre em desenhar e pintar suas floristas, suas baianas e demais personagens que guardava na memória, lembranças da sua distante Bahia.
O tempo avançava.
Jurandi trabalhava dia após dia.
Na década de 1970, Jurandi estreou como artista e iniciou a sua jornada de exposições. Suas obras passaram a ser expostas em importantes galerias e espaços culturais.
Na década de 1980, o leiloeiro Mauro Zuckerman adquiriu de Jurandi centenas de telas. Foi aí que Jurandi Assis ficou conhecido e suas obras foram parar nos quatro cantos do mundo.
Na década de 1990 Jurandi resolveu escrever um livro contando um pouco sobre a sua vida.
Dia e noite, noite e dia, estava lá Jurandi, trabalhando, desenhando, pintando e escrevendo.
Finalmente o livro ficou pronto. Um bonito livro, com muitos desenhos e pinturas.
O livro teve o ensaio crítico de Jacob Klintowicz e levou o título de O inventário do cotidiano.
Foi lançado no ano de 2000, na Casa da Fazenda, no Morumbi, em São Paulo.
Em setembro de 2002 Jurandi conheceu por acaso e muito rapidamente, numa loja, na rua Padre José de Anchieta, quase esquina da rua Antônio Bento, em Santo Amaro, um moço chamado Cristóvão.
Por coincidência, Cristóvão, no Natal daquele ano, recebera de presente, das mãos de Adozinda Kuhlmann sua conhecida de muitos anos e ilustre santamarense, o livro de Jurandi Assis, O inventário do cotidiano.
Cristóvão se encantou com o livro. Adozinda disse que era amiga de Jurandi, razão do presente de natal.
Quanta coincidência.
Cristóvão disse a ela que conhecera Jurandi havia pouco tempo, e como ela o conhecia, perguntou-lhe onde ele morava. Quando Adozinda respondeu, Cristóvão descobriu que Jurandi morava muito perto. Todos moravam em Santo Amaro.
Dias depois Cristóvão tomou uma decisão, foi visitá-lo.
Numa manhã de janeiro, na sala da casa de Jurandi, os dois passaram um bom tempo conversando.
Conversaram sobre muitas coisas como o encontro na loja, a infância de Jurandi em Santa Maria da Vitória, o mestre Guarany. Conversaram sobre São Paulo e sobre arte.
Conversaram também sobre o passado do bairro de Santo Amaro, Santo Amaro do poeta Paulo Eiró, Santo Amaro do artista Júlio Guerra, Santo Amaro do historiador Edmundo Zenha. Um Santo Amaro que já não existe mais. Hoje são somente lembranças.
Ao termino do encontro, Jurandi e Cristóvão começaram a ficar muito amigos e, na despedida, Cristóvão perguntou para Jurandi o que ele ia fazer.
Jurandi respondeu:
– Vou pintar um quadro, e você?
Cristóvão respondeu:
– Vou escrever um livro.
– Então, quando estiver pronto você me mostra, disse Jurandi.
Tempos depois...
– Taí Jurandi. Taí criançada. Vocês acabaram de ler.
(*) – Guarany.
Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany,(1884 – 1985).
Natural da Vila de Santa Maria da Vitória. Foi artista plástico e dentre outras artes destacou-se pelo pioneirismo na escultura de carrancas. Foi contemporâneo e conhecido de Jurandi Assis.

Obra registrada no Escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional em 13 de dezembro de 2005 sob o nº 363.393
Revistas

- “Revista Abigraf”. Edição de jul/ago de 2001. Capa e matéria.
A arte regionalista de Jurandi Assis
Texto de Tânia Galluzzi

Apoiado no desenho e na composição, o artista reconstrói a vida simples e culturalmente rica do nordestino em meados do século passado, resgatando caras lembranças de sua infância.
As lavadeiras, o baile na roça, o bumba-meu-boi, os vaqueiros, o violeiro. Essas e muitas outras são as lembranças de Jurandi Assis, as quais com sensibilidade e muita cor transpõe para as telas, cheias do calor da ensolarada Bahia.
A pintura de Jurandi Assis, como descreve o crítico de arte Jacob Klintowitz no livro sobre o artista, reúne dois pólos. De um lado é dionístico. O artista entrega-se totalmente às percepções, permite emergir as memórias, as alegrias e os cheiros que conheceu e ainda ama. É um homem voltado para o prazer da atividade e com o vigor de quem encontra na expressão os melhores momentos que conhece. Por outro lado, ele organiza geometricamente o espaço, cuida das passagens cromáticas e planeja com detalhes a visualidade da obra.
Nascido em 1939 em Santa Maria da Vitória, BA, o assunto da pintura de Jurandi Assis é a vida do interior brasileiro da primeira metade do século passado. É rural, interiorano, provinciano. Mais do que tudo isso, afirma o crítico e amigo pessoal do artista, é uma pintura que se refere a um modo simples de viver e existir. Não há dúvidas metafísicas nesta manifestação artística, mas o inventário do cotidiano. Os assuntos são os pássaros, o carnaval, a natividade, a pesca. Uma comunidade rural definida e estruturada para uma existência básica.
Apesar de sua pintura não permitir o vazio e de seu caráter descritivo, ela é silenciosa, apoiada no desenho e na composição.
Os personagens são perfeitamente delimitados e o espaço é severamente organizado.desta maneira, o artista indica ao seu público que o seu mundo é o do pensamento, do desejo, da imaginação, da memória idealizada. Nada está entregue ao acaso, tudo foi estudado à exaustão. Mesmo que o planejamento das obras, os estudos preparatórios,não sejam exaustivos, a vivência imaginativa da ficção é minuciosamente desenvolvida.
Jurandi descobriu o desenho aos sete anos, quando uma bordadeira a serviço de sua mãe deu-lhe alguns rabiscos para copiar. O suporte para tal tentativa foram as paredes da sala, que ficaram cobertas pelos riscos tortuosos do menino. Quando entrou para a escola já chegou com fama de desenhista, e o apoio das professoras, conta o artista, foi fundamental pára que ele se tornasse cada vez mais próximo dos lápis e do papel.
Da publicidade à pintura
Aos 17 anos, Jurandi decidiu partir para São Paulo a fim de viver a arte. Porém, a vida na cidade grande era infinitamente mais difícil do que ele imaginava e seu primeiro emprego foi como balconista em uma papelaria. Vendo na publicidade uma saída, sempre que podia mostrava seus desenhos para os clientes em busca de uma chance. E ela apareceu na figura de Oscar Costa, ilustrador, publicitário e artista plástico, que passou a receber Jurandi em seu estúdio, nos fins de tarde, permitindo que ele aprimorasse seus conhecimentos técnicos. Algum tempo depois, Oscar Costa foi convidado para trabalhar no departamento de arte da Avon, levando Jurandi consigo. Na empresa, o artista encontrou um ambiente favorável não só para desenvolver a linguagem publicitária como a pintura, uma vez que a companhia abria espaço para pequenas exposições. Foi numa dessas oportunidades que seu caminho como pintor deu uma guinada.”Um dia levei à Avon uma paisagem impressionista, que foi analisada e considerada boa pelos colegas do departamento. Um deles, contudo, disse que dentro daquela escola eu nunca me destacaria, aconselhando-me a desenvolver um estilo mais pessoal, no qual pudesse evidenciar os costumes e o folclore da minha terra natal. Fiquei chocado num primeiro momento, mas decidi apostar nessa direção, esquecer as referências e dar asas à minha imaginação”.
Já fora da Avon, mas mantendo a atividade publicitária para seu sustento e a artística por vocação, Jurandi fez a sua primeira individual em 1974, na União Cultural Brasil Estados Unidos, com a apresentação do artista plástico Rebolo. A partir daí o caminho estava definitivamente aberto e diversas exposições se sucederam. A mais recente aconteceu entre junho e julho deste ano, na Casa da Fazenda, em São Paulo, com a apresentação de 24 telas.
Em 1996, o artista passou a dedicar-se apenas à pintura e à viabilização de mais um sonho, a edição de um livro autobiográfico.
Em setembro do ano passado, o projeto foi concretizado com o lançamento da obra, Jurandi Assis, pintor: O Inventário do Cotidiano. Com o ensaio crítico de Jacob Klintowitz e o projeto gráfico do próprio Jurandi, o livro foi fotolitado e impresso pela Laserprint, com tiragem de 1.500 exemplares, obra que já foi inclusive incorporada ao currículo de alguns colégios, como São Bento e o Visconde de Porto Seguro, de Valinhos, interior de São Paulo.jurandi se prepara, agora, para a edição de um segundo livro, para o qual já tem 480 desenhos e 10 telas prontas.( junho de 2001)
- “Galeria em Tela”. Revista. Edição Especial nº5.  Editora On-Line. - 2003
Edição histórica, apresentando trabalhos de grandes artistas em exposição no Masp Centro, em São Paulo, faz uma homenagem ao Grupo dos 19, retratando o famoso movimento artístico de 1947. Uma oportunidade imperdível de conhecer arte unida à história. Dentro um encarte com desenhos de Jurandi Assis para serem exercitados.

 

 

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